Eis o mistério da fé…

Depois do impacto imediato de Entre Facas e Segredos, a Netflix não demorou a entender o potencial daquela história. Ao investir quase 500 milhões de dólares para transformar o filme em franquia, o streaming apostou não apenas em mistérios bem construídos, mas em uma marca autoral. Glass Onion: Um Mistério Knives Out, lançado em 2022, confirmou essa aposta ao manter a força investigativa do original, enquanto remodelava a narrativa com novas críticas e uma estrutura menos convencional de revelações.
Agora, em 2025, Vivo ou Morto: Um Mistério Knives Out chega como o terceiro capítulo dessa antologia investigativa e repete o feito. O filme apresenta um novo caso, um novo cenário e uma nova camada de crítica social, mas, acima de tudo, se permite inovar novamente na forma como sua história é contada.

Logo de início, o longa chama atenção pelo tom mais sombrio. Diferente do clima quase lúdico dos anteriores, aqui a atmosfera é mais pesada e introspectiva. A escolha de ambientar a trama dentro de uma comunidade religiosa, com a igreja como espaço central, causa um certo desconforto proposital. É um cenário que carrega simbolismo, culpa e tensão moral, funcionando como terreno fértil para as reviravoltas que virão.
O roteiro encontra sua principal força nos sentimentos que movem os personagens. Fé, fama, fúria e ambição financeira se entrelaçam de forma constante, conectando todos ao mistério do assassinato. Não se trata apenas de descobrir quem matou, mas de entender por que cada pessoa ali teria motivos suficientes para fazê-lo. A investigação se torna emocional antes de ser lógica.

No centro desse tabuleiro está, mais uma vez, Benoit Blanc. Daniel Craig retorna ao papel com absoluto domínio, entregando pela terceira vez um personagem carismático, sagaz e irresistivelmente irônico. Blanc continua sendo um detetive que observa o horror sem perder o humor, equilibrando leveza e seriedade de maneira exemplar. Após esse terceiro filme, é difícil negar: Benoit Blanc já ocupa um lugar entre os grandes personagens icônicos do cinema contemporâneo.
Desta vez, porém, Blanc divide o protagonismo de forma mais clara. Josh O’Connor surge como a verdadeira figura central da trama, assumindo o espaço que antes foi de Ana de Armas e Janelle Monáe. Seu personagem é o eixo em torno do qual tudo gira, e não por acaso o filme se inicia com os acontecimentos sendo apresentados a partir de seu ponto de vista.

Essa escolha narrativa reforça algo que já estava claro: a franquia Knives Out não se prende a uma estrutura fixa. Enquanto Glass Onion escondia seu verdadeiro foco até o último ato, Vivo ou Morto escancara desde cedo quem é a peça-chave do quebra-cabeça. Ainda assim, o mistério não perde força, apenas muda de perspectiva.
O padre interpretado por O’Connor se mostra um personagem complexo. Apesar de um passado marcado por erros, ele surge como alguém genuinamente bondoso, compassivo e movido pela fé. Esse contraste se torna ainda mais evidente dentro de uma igreja dominada pela influência de outro padre, vivido por Josh Brolin.

A igreja, aqui, deixa de ser apenas um espaço físico e passa a funcionar como um organismo vivo, moldado pela figura central de Brolin. Longe de representar acolhimento ou espiritualidade, o local se transforma em palco para a construção de um culto à personalidade. O sacerdote não recebe novos fiéis de braços abertos; pelo contrário, exerce controle absoluto sobre os que já estão dentro. Seus seguidores não são guiados pela fé, mas pela devoção à figura do líder, tratados como peças facilmente manipuláveis dentro de um jogo de poder opressivo.
Essa dinâmica funciona como uma crítica social direta aos dias atuais, especialmente à forma como tudo se torna produto da midiatização. A fé vira espetáculo, o púlpito vira palco e os fiéis se tornam audiência fiel e passiva, isso é dito no filme em certo momento. O longa aponta, de maneira incômoda, como discursos de autoridade são sustentados pela performance e pela repetição. Em um mundo onde tudo é consumido, até a espiritualidade pode ser manipulada, monetizada e transformada em instrumento de dominação.

Além de Craig e O’Connor, o elenco de apoio é um verdadeiro desfile de grandes nomes. Glenn Close, Thomas Haden Church, Cailee Spaeny, Andrew Scott, Jeremy Renner e Mila Kunis enriquecem a narrativa com personagens bem definidos e essenciais para o funcionamento da trama. Cada um representa uma faceta da devoção cega, da hipocrisia ou da manipulação exercida pela figura central do padre de Brolin.
O roteiro se diverte ao explorar o mistério da morte que move a história. É quase um jogo com o espectador, apresentando todas as possibilidades imagináveis: todas as formas de morrer e todas as formas pelas quais aquela pessoa poderia ter sido assassinada. Essa abundância de caminhos falsos e pistas ambíguas é justamente onde reside o charme da investigação.

Rian Johnson, mais uma vez, prova seu domínio absoluto do gênero. Além de escrever, ele dirige com segurança, explorando a paisagem de uma pequena e pacata cidade de forma elegante e simbólica. O ritmo é propositalmente mais contido do que nos filmes anteriores, permitindo que os conflitos se assentem. A direção também acerta ao integrar os elementos católicos à estética do filme, criando imagens fortes e carregadas de significado. Mesmo sendo um lançamento de streaming, Johnson entrega cinema de verdade.
De maneira surpreendentemente sombria, Vivo ou Morto se revela uma experiência divertida, envolvente e emocionalmente satisfatória. A batalha entre fato e fé conduz não apenas o mistério, mas também as relações entre os personagens. É um filme que diverte, provoca e emociona, equilibrando entretenimento e reflexão com rara habilidade. O longa reafirma a força da franquia e o talento de seu criador. Se depender desse nível de qualidade, fica fácil concordar com o sentimento que o próprio filme desperta — eu poderia, tranquilamente, assistir dezenas de histórias como essa em sequência.


